Diário de um Passado Não Tão Distante — 2

MULHER-BOMBA — 2

Estou bem vazia para escrever, mas preciso tentar.

Por fim não explodi… Estou aqui de volta ao Diário, cansada de mim, vazia de qualquer coisa, ainda ouvindo excessivamente um mundo de barulhos externos e internos, porém melhor e… ESTÁVEL! Sim, não explodi, estou estável graças a Deus e ao carbonato de lítio. Também credito o meu “desarmamento” a uma intervenção terapêutica espiritual. A tradicional frase “o que eu preciso aprender com isso” aparentemente foi arremessada ao lixo nesse episódio misto do Transtorno Afetivo Bipolar ( TAB )

Faz muitos anos que me pergunto: O que preciso aprender com isso? Só que dessa vez só senti raiva e frustração por estar “aqui” mais uma vez com o TAB ativo. MUITA raiva e frustração mesmo! Isso para além de estar no mar revolto das emoções que é o estado misto; pois a sensação que dá é de estar lutando para não afogar. Eu quero voltar à praia, mas as ondas estão enormes e me obrigam a mergulhar e mergulhar, mal tenho tempo entre uma e outra onda para respirar e me manter à flor da água… isso por horas e dias. Quase três meses. O cansaço vem e a “única” solução é “desistir”. Senti muita vontade.

Mas não desisti. Fui para o Caps pedir ajuda. Consegui marcar com esse novo psiquiatra que me perguntou “por que NUNCA tinha tratado o TAB” — eu não tomava o lítio ( remédio estabilizador de humor ) até esse episódio. Como eu posso saber por que nunca tomei esse ou aquele medicamento? Eu tomo os que me receitam! De 16 anos para cá eu não descontinuei a medicação, exceto por mútuo acordo com o médico revendo as dosagens.

Remédio é qualidade de vida. É minha continuidade na vida. E nunca foi tão ruim como esse episódio atual. Eu já tive depressões severas e uma foi incapacitante. Eu tinha 26 anos, minha filha caçula ainda não tinha um ano. Eu vinha de uma fase de hipomania (que devia estar beirando a mania), pois lembro que dormia umas 4 horas por noite. Eu dava aula, fazia faculdade, tinha três filhos pequenos, ia de bicicleta trabalhar, estava no coral, me sentia “brilhante”… Um pouco tempo antes de “bugar” fui levar meu filho mais velho ao pediatra e me chamou a atenção a fala do médico, que parecia que eu tinha dez dentro de mim: “Como é que você aguenta?”; eu dei de ombros. O que mais me capturou foi a expressão do olhar dele; algo que eu não conseguia ler o que era naquele momento; mas inesquecível. Hoje sei que entendo.

Não passou muito tempo e desmontei! Recordo-me que àquele dia não fui para a fisioterapia de bicicleta, porque estava começando a me sentir cansada — mesmo assim não conseguia dormir mais que 4 horas. Cheguei à clínica, deitei para fazer o aparelho que esquentava. Quando terminou o tempo, a moça veio falar comigo e eu não entendia mais nada. Eu NÃO entendia o que as pessoas falavam! Era como se o meu cérebro tivesse desligado! Eu não conseguia me movimentar, falar, nem pensar.

Todas as lembranças desse momento são bastante enevoadas, porém me ocorre que chorava silenciosamente e chorar era um enorme esforço, então as lágrimas escorriam pelos cantos dos meus olhos. Outras lembranças são: Um rebuliço porque eu estava passando mal; eu sendo carregada pelos ombros com uma pessoa de cada lado igual bêbada; uma consulta médica; uma injeção.

Depois fiquei por uma semana na casa de amigos para descansar, lá eles tinham uma empregada que podia me “olhar”. Dormia o dia todo; levantar para tomar banho e comer era um enorme esforço. Depois voltei para casa e tudo o que sei é que eu ficava sentada na sala da minha sogra com a TV ligada sem entender o que falavam; quer dizer, entendia as palavras, mas se me perguntassem um minuto após o que tinha sido falado eu não sabia repetir. Foram uns dois para três meses assim, em off. Tudo o mais… Nada. Vazio.

E volto ao vazio do momento. Por que e para que escrevo? Talvez para avançar no que preciso aprender “dessa vez”? Porque a verdade é que não estou me suportando. Estou MUITO cansada de mim. Cansada de funcionar assim, de ter medo “atávico”, de precisar me ajudar responsavelmente, cansada de não ter uma vida minimamente tranquila, cansada de não desistir, de ter que tentar mais uma vez, de pensar “mas o que adianta eu ser tão inteligente se”… Tô cansada. Não tenho coragem de “fazer besteira”, porque penso na minha família. Eu queria fugir, mas não posso fugir de mim.

E como cheguei “aqui”? Em janeiro tive um gatilho emocional ligado ao meu funcionamento codependente* e achava que tinha conseguido me dessensibilizar o suficiente para que o botão de liga-desliga do TAB não fosse acionado, mas aparentemente não foi isso o que aconteceu. Então no começo de fevereiro tive Covid; penso que isso facilitou o desenrolar e o agravamento. Não posso afirmar, mas a Covid é uma doença inflamatória e o TAB é um estado pró inflamatório. Existem estudos sobre a associação da inflamação no cérebro com as fases ativas do TAB, de qualquer modo, com ou sem inflamação, comecei a piorar de forma rápida e intensa.

De repente comecei a me sentir como se estivesse em ebulição; por fora ainda aparentemente tranquila e por dentro a agitação; as emoções e os pensamentos “crescendo” de jeito desordenado. Eu começava a sentir que não cabia dentro de mim. Saquei o que estava acontecendo e fui ao Caps pedir ajuda. O Dr. Renato Silva**, psiquiatra especialista em bipolaridade a quem tenho acompanhado durante esse tempo, diz que o conhecimento salva. Realmente salva. Se eu não tenho conhecimento de mim mesma e do transtorno poderia ter postergado o pedido de ajuda e agravado ainda mais o episódio.

No meio do mês de fevereiro tinha ido à UBS para uma consulta de encaminhamento para o Caps, pois achava que precisava olhar para o que tinha acontecido em janeiro. Lá me informaram, erradamente, que eu deveria aguardar o contato. Duas semanas depois eu resolvi ir ao Caps por conta própria e constatei o erro, pois o serviço agora trabalha de “porta aberta”, ou seja, qualquer um pode chegar e solicitar o atendimento. Dei muita sorte porque tinha um horário para acolhimento naquele momento e durante a conversa com a psicóloga eu me sentia “ leite derramando”.

Ou seja, foram apenas duas semanas entre o momento na UBS — quando eu não sentia o transtorno ativo e buscava apenas um suporte terapêutico — e aquele momento do acolhimento no Caps, quando já me sentia claramente confusa quanto às minhas emoções e pensamentos. Eu estava iniciando um episódio misto, que é literalmente o inferno na terra. Só entende quem passa por isso.

O TAB é um funcionamento neuro-bioquímico deficiente***; acontece no nível neurológico, nas sinapses do cérebro, quando alguns neurotransmissores ( a bioquímica ) estão em maior ou menor quantidade e isso faz com que o cérebro fique mais ativo ( mania ou hipomania ) ou menos ativo ( depressão ) do que normalmente é necessário. O TAB não tem a ver com força de vontade, com questões psicológicas, com falta de fé, com chateações, problemas e dificuldades cotidianas. Tudo isso pode me afetar como afeta qualquer pessoa. Se eu fosse diabética ou hipertensa possivelmente pioraria minha saúde passando por algum problema, porque o corpo é um sistema, mas é só isso. No caso eu herdei o TAB e não problemas de coração.

Já tive muitas depressões em diferentes graus, vários episódios de hipomania e três mistos, Dessa vez o TAB se manifestou num estado que tem características dos dois polos — ativo e inativo — o episódio misto. É difícil de relatar, mas vou tentar: Angústia e ansiedade fora do comum por nada! O cachorro que late, o aviso de mensagem no celular, o carro que passa, precisar me comunicar… A hipervigilância; como se a qualquer momento algo terrível e trágico fosse acontecer num estalar de dedos! Não existe racionalidade, só um sofrimento emocional gigante atormentando a cada segundo. Além das emoções desgovernadas, o pensamento não para, com um afluxo incessante de pensamentos intrusivos de desvalor, que potencializam o desejo de me ferir e de morte, fazendo um looping eterno de emoções e pensamentos desgovernados. É uma luta desigual para conseguir não se identificar com as emoções e pensamentos, deixando-os de lado.

Outra imagem que faço do estado misto ( além daquela de afogar-se no mar revolto das emoções ) é uma bola de pingue-pongue arremessada com força num pequeno ambiente; ela quica e quica e quando vai parar é arremessada de novo com um tapa enorme. Mas a bola não é leve, ela se transforma e adquire características diferentes — espinhuda, elétrica, de chumbo — entretanto continua quicando rápido. As paredes são sensíveis, como se estivessem inflamadas. A cada toque, uma dor. É assim que foi para mim. Exaustivo.

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Três semanas sem escrever… Nem sei bem por onde continuar. O “vazio” venceu nesse tempo, quer dizer, acho que estabilizei para baixo, deprimida, pois estou lenta, “cansada”, sem memória, “disléxica”. De uns anos para cá eu percebo que a memória vai embora sempre após um episódio. Estou MUITO esquecida e imagino que, nesse momento, isso é mais desgastante para os outros que convivem comigo do que para mim, porque acabo criando certa confusão, principalmente nas relações de trabalho. Pedidos de desculpa frequentes amenizam? Só me sinto uma incapaz. Também ontem me dei conta de que não paguei nenhuma conta há mais de um mês.

O fato é que o vazio persiste. Não é angustiante, mais das vezes é triste, como agora, porque não sinto Fé, não acredito em mim, não vejo perspectiva de nada na vida e estou totalmente descrente de qualquer possibilidade. Eu sei que vai passar, porque passa há 37 anos, então, só espero pacientemente. Sei que vai passar porque percebo que minha capacidade de me alegrar está aumentando. Enquanto isso, vou tocando como dá o dia-a-dia: caminhadas, cuidado com a alimentação e sono, terapia, Caps, ver bons vídeos de suporte no Youtube, ouvir música, tentar não me isolar, entrei na aula de dança.

A coisa mais difícil é continuar com o trabalho. Não poder largar até estar melhor é um grande ponto de tensão. Não sei como dei conta esses meses; talvez que porque tenho um senso muito grande de responsabilidade e, certamente, porque preciso já que sou autônoma, mas foi a cereja do bolo do inferno. Penso que esse assunto — trabalho — dá pano pra manga, pode ser até um texto para outro diário, então paro por aqui.

Eu não sei como finalizar esse relato, mas como é meu, finalizo do jeito que dou conta aqui-agora. Não tenho compromisso literário, estético. Só quero deixar registrado o meu processo com os transtornos. Agradeço por estar estável e como digo quando alguém pergunta “você está bem?”, respondo: “Viva e respirando… já é sempre um bom começo”.

*Meu funcionamento codependente — Falo sobre isso no texto anterior do Diário: Mulher-Bomba (1).

**Dr. Renato Silva — Psiquiatra que é especialista em TAB; criou o método ‘Vôo Bipolar’ para a estabilização do humor e que pretendo fazer assim que possível. Foi precioso acompanhá-lo durante esse tempo do estado misto, sinto que me ajudou muito a segurar a onda. Ele fala que só o tratamento medicamentoso não é suficiente, que é preciso fazer um tratamento ativo, protagonizar a mudança de hábitos para ajudar na estabilização bioquímica. O interessante é que muito do que ele fala, eu já tinha intuído ou percebido através da auto observação e experimentação, tanto que criei uma lista para mim que chamo “Meu Kit de Ferramentas para a Saúde mental-emocional-afetiva-espiritual estando nesse corpo”; de tempos em tempos atualizo. É tipo minha boia salva-vidas, porque sei que não posso confiar na minha memória, emoções e pensamentos. Se está escrito posso ler e seguir.

***Como o cérebro funciona é um assunto interessante, fundamental para entender o TAB e, atualmente, pode ser facilmente consultado através da internet.

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Ana de Araujo_Inã Vivá Teceberaba

Criativa, curiosa e inventadeira, adoro escrever, desenhar, contar histórias, brincar, dançar, estar em roda, prosear, pensar “como seria se…” e um bom desafio